Coluna Bilhete
Transcrição
Minha querida Bandeira – Quando o Manoel Miranda e mais alguns homens austeros resolveram criar a tua religião e o dia que sintetizasse o culto de todas as horas que devemos ter “por ti”, mal sabiam que os seus nomes desapareceriam na onda do patriotismo profissional e que, para cúmulo, tu, Bandeira, pálio [COB1] do espírito da pátria, servisses para pretexto de explicações políticas e de crises histéricas da cavação barata.
É ridículo para os sujeitos sem escrúpulos ter respeito por alguma coisa: é cômico mostrar sinceridade em época de erro e vilania, embuste e torpeza, ignorância e filância. Mas ontem depois de te ver pela cidade, incorrupta e perfeita, drapejando no alto dos mastros a mesma riqueza solar, a mesma esperança, o mesmo comando de “ordem e progresso”, lançado divinamente dentre as estrelas do Cruzeiro do Sul, eu pensei nas tremendas convulsões por que os humanos fazem passar as ideias.
Bandeira do Brasil, tão reflexo da nossa pátria que as cores do teu pano parecem ter-se harmonizado aí mais como espontânea vontade da terra que por engenho dos homens. Bandeira que tens no campo da esperança o losango metálico do nosso sol e das entranhas da nossa terra e nesse pano de ouro o céu sul-americano, com a marca do cruzeiro dizendo a todos: adiante! Bandeira que dizes concórdia, congraçamento, adiantamento ao mundo inteiro e acenas às multidões a terra da promissão – o que fizeram do teu dia, do dia do teu culto!
Na Prefeitura, o Presidente procurou o teu dia para se estrear novamente no meeting reacionário, acusando os que lhe apontam os erros, com os efeitos dos oradores de província inseguros de argumentos, de corvejar em torno da carniça de um país que ele quer reservar para os amigos íntimos, e carniça que é a sua administração confusa.
Nas ruas espalhavam boletins, mandados fazer pela verba secreta da polícia, ameacando aquelas casas que a teu lado, ó Bandeira de amor fraterno, ousassem hastear outras bandeiras de nações irmãs e amigas, querendo reduzir o Brasil de 1920 à intolerância boxer da China, minutos depois de se armar com o crédito ilimitado um pelotão de patetas de palácio atrás do rei Alberto e de ondular mais de mês em todo o Rio a bandeira belga.
E para mostrar a grandeza incomparável da pátria que tu simbolizas, ó pendão auriverde, arranjaram à força regatas de pescadores das ilhas e fizeram a apoteose da traição, a apoteose de Calabar.
Que diria, ó minha Bandeira, dessa apoteose, o primeiro cavaleiro brasileiro Jorge de Albuquerque, que combateu pela Raça e por ela morreu em Alcacer-Quibir[COB2] ? Que diriam, se de repente Deus os tornasse ao mundo, os três Reis Magos da Nacionalidade desta terra celeste, Vidal de Negreiros, o branco, Henrique Dias, o negro, Camarão, o índio, que divinatoriamente inspirados pela tua tutelar constelação foram chefes contra o invasor defendendo o Brasil da nossa vida, da nossa língua, da nossa certeza, despertando o verdadeiro nacionalismo? Que diria esse índio Araribóia, que com São Sebastião descido do céu ajudou Estácio, o ilustre descendente de ilustres, a expulsar franceses para fundar o nosso Rio de Janeiro, faro atlântico do futuro embriagador?
Talvez velassem apenas o rosto de vergonha. Como todos os brasileiros de agora diante da onda convulsa de desequilibrados, movidos pelos inimigos ocultos da nossa ordem e do nosso progresso.
Mas tu, Bandeira, após essas misérias, que és no ar o anseio de espaço da pátria inteira, tu drapejavas o ouro, a esperança, o céu e as estrelas como sempre; e, por inúmeras praças e ruas multiplicada, não vias a estupidez histérica e a infâmia secundária.
Tive, pois, o consolo, ó Bandeira. Tu nos clavavas, tu nos guiavas, tu dizias exatamente o contrário desse formigueiro de saúvas malandras; tu não eras contra as outras bandeiras, não desenterravas Calabar, tu rufavas em todos os mastros o sinal de sentido ao mundo, para que venha à terra que soube fazer-se da sua raça lusa para os honestos, os leais, os independentes da terra inteira. E mais do que nunca eu te venerei, ó preclara, na tua lição insigne.
João do Rio
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