Coluna Bilhete
Transcrição
A Tiradentes – Senhor alferes. Devo apresentar-lhe pêsames pelo modo por que o aniversário do seu sacrifício se passou. Não sei se o Sr. alferes na conspiração que surgiu para a história com o nome de Inconfidência Mineira tinha ideias aventadas sobre patriotismo. A América é a única parte do mundo em que os países até o dia da independência tiveram de ter uma noção de patriotismo diversa da de qualquer outra terra que recobra a liberdade. Porque, antes da independência não havia na América povos oprimidos, mas apenas filhos que não queriam mais trabalhar para os pais.
A Inconfidência Mineira podia ter sido na sua ossatura o grito de revolta dos exploradores do ouro resolvidos a não serem mais explorados. E, como acontece noventa e nove em cem vezes, os exploradores deixaram ir na frente os poetas, os sonhadores, os fantasistas e quando chegou a hora decisiva – só os poetas ficaram com os seus ideais, porque os defendidos por eles davam o fora, sem piedade e sem vergonha.
Ainda hoje, Sr. alferes Xavier, vemos os patifes chamados homens conservadores fazerem o mesmo que os exploradores do oiro crivados de impostos fizeram, deixando que fossem presos alguns moços líricos que sonhavam a liberdade...
Mas os fatos são uma coisa e a noção simbólica que deles se deve ter inteiramente independente da realidade desses fatos. Por isso se faz a história que começou tendo o nome de legenda para embelezar todas as ações vulgares de saque e exploração dos gregos e dos romanos. Por isso a história serve de embasamento ao sentimento de conservação dinâmica dos povos. Por isso, o patriotismo se prova pela maneira pela qual acreditamos nos nossos símbolos.
Estou talvez falando difícil para o alferes, apesar de saber o seu preparo tão maior que os de muitos jornalistas cavadores que bancam de donos de folhas por aí. Peço desculpa, crente de obtê-la porque todo esse palavreado é apenas para lhe dizer que, feita a Independência e a República (a segunda Independência, por ser o atestado da consciência civil do povo) – todas as datas históricas devem ser festas congregadoras da fé brasileira e as pessoas que lhe servem de pretexto, símbolos de ideias de vitória e glória – mesmo que não tenham em vida passado de insignificâncias notáveis apenas pelo acaso.
Para mim a Inconfidência não tinha nada que ver com o patriotismo. Foi apenas um caso em que portugueses e brasileiros donos de minas, furiosos com os impostos, serviram-se de pobres almas delicadas e de espíritos sonhadores a ver se o governo da Metrópole, com medo de zaragatas[COB1] , os protegia a eles, mesmo que a primeira condição fosse prender ou degradar os jovens ilustres assaz ingênuos para acreditar em liberdade com malandros ricos ao lado.
Mas feita a República, com a feição religiosa que lhe deram os positivistas, seus principais autores, marcado o dia do protomártir [COB2] da República, Tiradentes (que outro não é senão o Sr. alferes Xavier), os homens de governo, os homens de opinião deviam tornar esse dia o grande dia republicano, embelezar ainda mais o que fizeram os positivistas, mesmo tendo a certeza de que o Sr. alferes de fato foi tão protomártir da república como Joana d’Arc era inspirada de Deus e Orfeu arrastava ao som da sua lira os montes.
Patriotismo, Sr. Xavier, está em ter fé num passado belo para criar um futuro realmente espantoso. Por isso tenho publicamente fé no republicanismo inexistente do Sr. alferes. E sinto que o dia da comemoração do seu martírio (há quem negue até o seu enforcamento) fosse tão friamente despercebido pela república de outro mártir: o Dr. Epitácio.
Saúde e fraternidade no céu da sua glória
João do Rio
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