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  • Foto do escritorCristiane d'Avila

Quinta-feira, 10/02/1921

Atualizado: 16 de jun. de 2021

Coluna Bilhete


Transcrição


Ao Sr. Álvaro Bomílcar – Você, meu caro Sr. Bomílcar, é o teorista, o filósofo, o sociólogo da atual crise jacobina no Brasil, contra os portugueses, para a “completa autonomia da nossa Pátria”. Como muita vez acontece com os instigadores sociológicos, você ficou na penumbra, sem ser citado, sem ser falado, ao passo que o nosso Alcebides marchou nas pegadas do Novidades e o nosso prezado Conde Affonso Celso, tão venerável mas inebriado de elogios, abre o lábio a cada instante, arrastado a pactuar com os mais desastrados excessos da campanha. É uma pena. As ideias são suas. E eu conheço-as há vários anos, desde quando você me mandava os seus estudos – para me convencer de certo.


É, pois, no terreno das ideias, que lhe escrevo este bilhete, para dizer-lhe que passei os três dias de Carnaval lendo a sua última brochura e vendo os folguedos da rua.

E, coisa curiosa, Álvaro Bomílcar! Foi exatamente a rua, a população apinhando avenidas e praças, o milhão e meio de cariocas que me provou de como a sua sociologia jacobina é antipaticamente inútil. Eu vi mais uma vez o nosso povo: preto, mulato, branco, português, imodificável. Qualquer alteração violenta na sua formação, que continuará ainda por um século, pelo menos, para a cristalização definitiva do tipo, será um desastre, será um furto às qualidades prodigiosas do dito povo.


Um dos maiores atentados ao bom senso é querer combater o português, para “termos a completa autonomia”. Historicamente os portugueses foram prodigiosos, organizando o Brasil e fazendo brasileiros com qualidades admiráveis de improviso e de independência. Mas outra grande obra dos portugueses, Bomílcar, é a assistência imigratória que eles nos prestaram em um século de independência nossa, vindo trabalhar para aqui, constituir família, morrer aqui. E essa assistência foi da população rural, da gente do campo, sã de corpo, sã de alma, duplamente resistente.


Ai de nós, ai da nossa autonomia, se as suas teorias, Sr. Bomílcar, proliferando no cérebro de alguns matóides ou de simples patetas alegres, que são jacobinos como usam casaco à americana, dessem resultado! A nossa espantosa formação está em sermos o que somos para adiante, com a nossa língua portuguesa, com o nosso sangue português e com esses portugueses infinitamente brasileiros, apesar de não se naturalizarem como os japoneses e os alemães agora.


Eu lia o seu livro durante o dia indignado, com vontade de rebatê-lo período por período. Vinha à tarde para a cidade, entrava no povaréu e, ao pensar em você, Sr. Bomílcar, ria com um bom humor excepcional.


Por que não veio você, sociólogo de gabinete, para a rua? Naquela multidão, passeando comigo, você descobriria uma coisa: a sensação do estrangeiro. Eu os descobria: os americanos amáveis, os espanhóis, os argentinos, os franceses. Mesmo com muito tempo de Rio, nos gestos, no olhar, na frase, no isolamento da personalidade dentro da alegria geral, eles continuavam separados de nós. Mas os portugueses eram a mesma coisa que brasileiros. Estavam no corso[COB1] , estavam nos bailes elegantes. Mas principalmente, Bomílcar, estavam parte componente do povo.


Por que, filósofo pregador da separação do nosso povo, não convidou você os cabeças de vento que espalham as suas ideias, para acompanhar os cordões, os ranchos, em que eles poderiam ver pretos, mulatos, brancos brasileiros, misturados de tal forma a portugueses, nas funções dos préstitos [COB2] que era para a gente morrer de riso dos insultadores de Pedr’Alvares? Por que não foi você aos bailes do Carlos Gomes? Eu lá estive, e lá encontrei uma francesa elegante, acompanhada de dois representantes do set carioca, um dos quais por sinal português. A francesa ia ver les coins pitoresques de Rio. Pois você veria naquela mescla do nosso povo a corda portuguesa entrançada à nossa, definitivamente...


Este bilhete é grande. A culpa vem do seu livro. E eu não posso terminar sem notar com um exemplo contrário à sua antipática e injusta mania de emancipação do Brasil emancipando-se (você já viu!) dos portugueses. O exemplo é arrasador.

Entre os máscaras da tarde, no Largo da Carioca, dei de repente com um português carregador, meu conhecido. Ele resolvera fantasiar-se: boné de pala, branco, calça branca e, porque é republicano, camisa verde e vermelha. Mas esse meu amigo (ele é honesto, trabalhador e leal) trazia a esposa, lavadeira, também fantasiada. A mulher segue o marido: ela trazia boné de pala, branco, saia branca e blusa vermelha e verde – republicanamente Bernardino Machado[COB3] .


Apenas a digna mulher trazia pela mão o seu primeiro rebento nascido no Brasil. O rebento estava também fantasiado: boné de pala, branco, calça branca, camisa... verde e amarela. Inconscientemente esse homem rude, que ganha na pobreza o seu pão, tinha o instinto da raça na terra irmã e ao seu filho desde a tenra idade ensinava, como podia, que ele era brasileiro!


Depois disso, meu caro Sr. Bomílcar, ríamos alegremente da sua sociologia contra os portugueses. O meu carregador, que nunca o lerá, respondeu, resolvendo-o, ao seu divertidíssimo livro.


João do Rio


[COB1]http://www.aulete.com.br/corso

[COB2]http://www.aulete.com.br/pr%C3%A9stito

[COB3]https://pt.wikipedia.org/wiki/Bernardino_Machado

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